quarta-feira, 12 de março de 2014

A fenda feroz



A manhã vai alta quando acorda de pálpebra moribunda. Não ignora que o corpo responde mal depois de liberto do casulo da volúpia nocturna, mas, ainda assim é surpreendido pela ausência de cor e ruído. Os sentidos botos transmitem a mensagem: não foi aquele o dia em que acordou mais novo. Um daqueles poetas, observadores das nuvens que pairam em cada folha de papel, saberia o que dizer mais; ele apenas tosse. É no que pensa enquanto estica as pernas e assenta os pés no chão.
Desequilibrado na beira do futon sente o frio do pavimento, revestido a madeira exótica, mas, despido de conforto ou consolo. Mede o espaço. Janelas altas rectangulares, nuas, ocupam toda a parede virada a nascente. Imponentes como gargantas de adamastores regurgitam luz em golfadas ininterruptas. Por um instante receia a cegueira da neve tal a intensidade do branco, quase líquido, que inunda o compartimento. Alfinetes invisíveis cravam-se na parte anterior dos olhos. Indisposto reconhece que a parte feliz da intoxicação desapareceu, chega agora a vez da catarse. Inspira profundamente, faz uma pausa nos movimentos e observa melhor: apenas tonalidades pálidas cobrem a divisão, tecto, paredes e mobiliário, nem o soalho muito claro interrompe essa harmonia. Nas paredes, em nichos ogivados, perfilam-se objectos cuja função desconhece. Está ali presente a austeridade de instalação hospitalar novecentista, ou de igreja protestante, é cedo para fazer a destrinça. O colchão japonês onde já consegue sentar-se, e colocado sobre um estrado à maneira ocidental, está no centro da divisão. Faltam almofadas, e apenas um edredão revolto, empilhado, gera relevo na paisagem monacal; um pequenino monte lascivo, vencido e abandonado à sua sorte por alpinista da carne láctea. Tem consciência que, visto em perspectiva, o quarto é semelhante a uma capela. Sente a piada fácil e grosseira a fazer caminho dentro de si e reprime, não está pronto para sacrifícios na pedra de ara. Opta ver-se como o cirurgião e a cama a sua mesa de operações. Vazio de ironia encontra ali terreno propício à comparação feliz, ao fim e ao cabo o seu trabalho durante a noite foi intervenção de monta, laborou sem descanso na incisão que, sabia ele, vinha de origem; manteve a ferida aberta, seguiu as instruções à risca, tatuadas logo abaixo do umbigo: «Não Suturar», dizia. É tudo o que recorda da leitura. Também sabe que não podia ter feito nada diferente: o corpo manda, o escalpelo obedece.

Não existem muitos sons durante uma vida que suplantem o interesse de passos femininos, seguidos de um toc, toc, na porta do quarto. Afivela um sorriso, levanta-se e caminha, já não recordando se vai entrar ou sair.

3 comentários:

  1. Isto é bom e triste ao mesmo tempo. Pelo menos é como estou, depois de te ler. Em todo o caso obrigada. Boa prosa.

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  2. Espero que seja para continuar :-)

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