A manhã vai alta. Acorda de pálpebra moribunda. Não ignora que o corpo responde mal depois de liberto do casulo da volúpia nocturna, mas ainda assim é surpreendido pela ausência de cor e ruído. Os sentidos botos transmitem a mensagem: não foi aquele o dia em que acordou mais novo. Um daqueles poetas, observadores das nuvens que pairam em cada folha de papel saberia o que dizer mais: ele apenas tosse. É no que pensa enquanto estica as pernas e assenta os pés no chão. Desequilibrado, na beira do futon, sente o frio do
pavimento revestido a madeira exótica, despida de conforto ou consolo. Mede o
espaço. Janelas altas rectangulares, nuas, ocupam toda a parede virada a
nascente. Imponentes como gargantas de adamastores regurgitam luz em golfadas
ininterruptas. Por um instante receia a cegueira da neve tal a intensidade do
branco, quase líquido, que inunda o compartimento. Alfinetes invisíveis
cravam-se na parte anterior dos olhos. Indisposto reconhece que a parte feliz
da intoxicação desapareceu, chega a catarse. Inspira
profundamente, faz uma pausa nos movimentos e observa melhor: apenas
tonalidades pálidas cobrem a divisão, tecto, paredes e mobiliário, nem o soalho
muito claro interrompe essa harmonia. Nas paredes, em nichos ogivados,
perfilam-se objectos cuja função desconhece. Está ali presente a austeridade de
instalação hospitalar novecentista, ou de igreja protestante – é cedo para
fazer a destrinça. O colchão japonês, onde já consegue sentar-se, colocado
sobre um estrado, à maneira ocidental, está no centro da divisão. Um cobertor
revolto, empilhado, gera relevo na paisagem monacal; pequenino monte lascivo,
vencido e abandonado à sua sorte por alpinista da carne láctea. Tem consciência
que, visto em perspectiva, o quarto é semelhante a uma capela. Sente a piada
fácil e grosseira a fazer caminho dentro de si e reprime, não está pronto para
sacrifícios na pedra de ara. Opta por ver-se como o cirurgião e a cama a sua
mesa de operações. Vazio de ironia encontra ali terreno propício à comparação
feliz, ao fim e ao cabo o seu trabalho durante a noite foi intervenção de
monta, laborou sem descanso na incisão que, sabia ele, vinha de origem; manteve
a ferida aberta, seguiu as instruções à risca, tatuadas logo abaixo do umbigo:
«Não Suturar», dizia. É tudo o que recorda da leitura. Também sabe que não
podia ter feito nada diferente: o corpo manda, o escalpelo obedece.
Não existem muitos sons
durante uma vida que suplantem o interesse de passos femininos, seguidos de
um toc, toc, na porta do quarto. Afivela um sorriso,
levanta-se e caminha, já não recordando se vai entrar ou sair.
Isto é bom e triste ao mesmo tempo. Pelo menos é como estou, depois de te ler. Em todo o caso obrigada. Boa prosa.
ResponderEliminarEspero que seja para continuar :-)
ResponderEliminarQue maravilha!
ResponderEliminar