Culpado foi o Inverno ameno e seco. Ainda o estio vinha longe e já o mercúrio galgava a escala. Astrólogos e meteorologistas, ofícios irmãos na exactidão matemática e de reputação consagrada, agouraram: «O Verão do nosso descontentamento não tarda,** e será um dos mais quentes de que há memória.»*** A justificação? Elementar (explicou depois o professor doutor J. H. Watson da Universidade de Oxford), as alterações climáticas cresceram em pujança. Após a mortandade vegetal na Amazónia, os excessos nos combustíveis fósseis (Volkswagen incluída), o metano lançado à atmosfera por vacas de todo o mundo (uni-vos!), eis que eclode impetuosa e despudorada a máquina de fumar electrónica. A invenção que suprime o elitista charuto e o operário cigarro foi saudada com vivas e amanhãs cantados. E-fumadores de todo o mundo batem no peito em contentamento, arrotam nicotina automática e exibem amor ao pénis do robot. Freud cora enquanto inala mais uma linha.****
Sensato, faz planos. Não garantem sucessos, minimizam riscos. Assim acredita com a mesma fé de quem carrega um pára-quedas suplementar. Em Dezembro faz pedido ao Menino Jesus. A quem havia de ser? Cristão, assiste com repulsa ao desvelo que pais e educadores ostentam pelo velho obeso de barbas brancas. Esse que nos templos pagãos atrai crianças com doces, as senta no colo, beija e acaricia. Ninguém gosta assim tanto de fedelhos mimados. O traje garrido e ridículo é disfarce. Envergasse ele fato de três peças Príncipe de Gales, farpela de escuteiro, vestimenta de professor de ginástica ou batina, e era vê-los correr, martelando smartphones, berrando indignações em redes sociais, lançando apelos e petições.
Por motivo dos custos de armazenagem, seguros e manutenção, pede entrega em Julho quando o calor requisita o corpo, os membros dilatam, a sudação mostra-se e as férias nos deixam ausentes de nós.
Chegara-se ao Outono e coisa nenhuma. Era uma dessas noites de luar, tépidas, em que o instinto nos leva a procurar espaços abertos. Abafa-se nas salas e não só de calor. Sentado frente à enorme massa líquida observa as ondas que se desenrolam exaustas — o plano inclinado devolve-as ao mar. Sobram na areia flocos de espuma, água morta portanto. Agora como antes ergue-se e caminha de volta ao topo da duna nua de flora nativa — um mons veneris actual. No trajecto pontapeia montículos de areia cobertos de lascas de búzios que, pequenas e afiadas, se cravam na pele, abrem feridas que sangram e ardem. A sua mortificação. Um ordálio e seria culpado. Inexoravelmente culpado.
Não foi este o tempo de ser regalado com ninfa orgulhosa que despreze água para ficar molhada. Fica o remorso de não haver abandonado ninguém.
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**Também veio no Outono, o outro descontentamento, em 4 de Outubro.
***Não leram Steinbeck. E do sucedido em 1975 saberão o que a têve mostra. O comunicado conjunto, tudo indica, terá sido redigido por um antigo revisor gráfico, da Imprensa Nacional Casa da Moeda, conhecedor das inclinações políticas do John.
****Sabemos que Freud a tomava liquida, diluída em água.
!!! (perfeito, mesmo que a ninfa não tenha aparecido :)
ReplyDeleteGrato, mas estou a testar uma fórmula para esse problema.
DeleteTalvez o texto mais longo de que tenho memória, aqui neste canto. Li-o 2 vezes ontem, e voltei a reler hoje, que já me desabituara de escrita de alto gabarito. Meticuloso. Excelente. Como sempre.
ReplyDeleteQuanto à ninfa ausente, pois que deve ter sido uma resposta kármica a isto:
"Fica o remorso de não haver abandonado ninguém."
Né?
Demasiado generosa. Talvez. Agora relido tem ar escolástico e aparenta referências (ligeiramente) herméticas. Deverei fazer da simplicidade um lema.
DeleteSempre com remoques. Um pessoa desnuda a alma e o que recebe?... Piadas.