sexta-feira, 10 de abril de 2015

Nos romances escritos por mulheres há sempre um homem que sofre de ejaculação precoce



Alexandra Lucas Coelho transforma o que seria um conto sofrível de vinte e cinco páginas em novela fodenga e vernacular* de cento e quarenta e duas. 

Produzido em cativeiro,** O Meu Amante de Domingo foi incensado pelo choninhas do José Mário Silva***. Mesurento, José Riço Direitinho, fez doação de cinco estrelas.**** E Pedro Mexia gabou o trabalho. Sobre este último não estou seguro. De todo o modo, se não disse nada é como se tivesse dito — quem faz vénias aos filmes de Manoel de Oliveira é pessoa para elogiar qualquer coisa.

Nada me impele contra aquelas realidades: o enredo e a linguagem. Pelo contrário. Já se produziu literatura de respeito com actividades sexuais não reprodutivas e responsos acamados.*****  E o acto em si — transformar uma coisa em outra — não é crime nem viola mandamentos literários. O romance light veio para ficar. O que incomoda é fazerem passar gato por lebre, ovas de sardinha por caviar. E a execução defeituosa. Os textos do suposto romance que a personagem principal nos dá a conhecer são execráveis. E desnecessários. O desfecho da história do caubói, e a sua motivação, estão ao nível de uma Corin Tellado. 

À muita palha na escrita, acresce uma capa dura (para escapar ao formato de bolso) e colunas de texto em tamanho reduzido (para aumentar o número de páginas), que ajudam a encorpar o volume, fazê-lo crescer, e ser romance. 

Nem tudo é mau. O livro atinge um pico de escrita entre as páginas 75 a 90 em sucessivos diálogos, com «o poeta futuro Nobel», bem construídos e humorados. Humor esse que pinga aqui e acolá:
«Um dia uma gaja está com quarenta, toda a gente lhe dá trinta, e de repente faz cinquenta. Aí, toda a gente diz que os cinquenta são os novos trinta.[...] O que digo é, quero o meu pescoço de volta, caralho.»
«[...]Achei eu (a capacidade de as gajas acharem é impossível de satisfazer).»
Isto, era tudo o que pensava sobre o assunto. Já estava tudo muito bem arrumado na minha cabeça, na mesma gaveta das meias e do arrependimento de ter pago o equivalente a três garrafas de tinto para degustar uma personagem que teve um affair com um mecânico de tatuagem «no peito oposto ao do coração». Eis senão quando O Amante volta a atacar. 

A pretexto das literaturas portuguesa e brasileira, na extensa entrevista de Paulo Moura, conduzida com muitos rapapés, a autora e compère, coniventes, promovem isentos de pudor ou vergonha, O Amante e o próximo livro da jornalista.  Mas, usando a linguagem da autora, não é isso que me fode. A obsessão carnívora sim. 
«Revejo-me muito na lógica do movimento antropofágico brasileiro, que vem dos índios. Comer o outro é uma forma de nos expandirmos.»
Revisita assim a personagem d'O Amante que matuta sobre a personagem do livro que vai escrever (um velho truque). Também ela possui instintos canibais.
«Importante era a fúria, a luta armada, a pulsão de vida contra os filhos da puta. O livro seria uma espécie de antropofagia, ela comendo o inimigo para ficar mais forte, como uma tupi portuguesa no Verão de 2014.»
Fiquei chateado, ora que caralho, logo na Sexta-Feira Santa, quando não se ingere carne a autora volta à sua obsessão de comer gente.


Em tempo: por manifesto desconcerto, ou início de senilidade vascular, não referi que a grande influência da autora, e sua bitch-mor, a personagem, obnubilada (adoro o vocábulo - lembra-me o autocarro para Chelas) por escudeiros e aias, responde por Reinaldo Moraes, autor de uma gigantesca suruba de quase seiscentas páginas. Pornopopeia é o seu nome, publicado entre nós em 2011 pela Quetzal. Alexandra escreveu peça entusiasmada: "Reinaldo Moraes: tesão ou morte". Incipit: «O pau de Zeca é o último dos duros». E quase a terminar: «A nós, última flor do felácio.» Não quis no entanto despedir-se sem a questão ontológica: «No meio de tanto calão, Zeca não tem mesmo uma palavra para minete? Quem diz Zeca, diz o Brasil.»

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*No sentido impróprio.
**«Nasceu da circunstância de eu estar numa casa, no meio do Alentejo, que era uma cozinha que se prolongava num quintal cercado por um muro.»
***«Se Joyce multiplicava o mundo, acrescentando camadas ao seu texto em vez de o rarefazer, como Beckett, então Alexandra neste livro está claramente mais próxima de Joyce, a quem de resto pede emprestado o artifício do fluxo de consciência.»
****«Há muitos anos que não aparecia na literatura portuguesa um livro assim.[...]É um livro que se inscreve de maneira perfeita numa certa tradição de plasticidade da linguagem narrativa da literatura portuguesa da segunda metade do século XX, e em que encontramos os nomes de Carlos de Oliveira, Nuno Bragança, José Cardoso Pires, alguma coisa de Augusto Abelaira, e a voz tão singular de Maria Velho da Costa.» Mas não escapa a erros factuais: «conduz um Lada Niva nas suas viagens dominicais a Lisboa para [...] ter encontros amorosos com um mecânico, o seu amante de domingo.» Em todo o livro, com o mecânico, apenas sucede um encontro com duas fodas, a primeira exageradamente rápida e a segunda no modo técnico de frango no espeto.
***** Confiteor: leio pouco e mal, deveria ter paciência para reler Os Buddenbrok. O mesmo não posso dizer sobre as últimas páginas do Correio da Manhã — embora, neste caso, ler seja manifestamente uma hipérbole. 

6 comentários:

  1. Primeiramente, deixa-me expressar o orgulho que sinto por ter lido ali, algures, a minha expressão preferida/d'estimação ("olha que caralho"), a qual uso várias vezes ao dia.
    Ainda me lembro de ser o seu uso quase como que tabú, lembro-me de ter sido até, de certa forma, repreendida por ti, à conta do tanto que a aspergia, aqui e ali, sempre plena de seu significado. Ó, bons tempos.

    Paneleirices à parte (´xa cá só limpar a lagrimita, pronto, já ´tá) e sobre o que escreves: Posso mandar-te uns livros que desconfio cá serem uma merda, pra depois tu, numa crítica assim singela, fazeres deles uma coisa que apetece ler?

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    1. Diga-se, em boa verdade, que usei o linguajar das gajas do Canidelo em homenagem à personagem do "romance", e à tua pessoa, a única que conheço que emprega com grande elegância o vocábulo "caray". Dito isto, não prescindo do direito de repreender os excessos.

      Aspergir não será o termo correcto. Acho que usavas mangueira, ou sistema automático de rega. Mas prontes. Já passou. Ó, bons tempos para ti também, depois veio a crise e lixou isto tudo.

      Podes remeter o que entenderes, desde que saibas o seguinte: sou um slow reader (este é um livro de Novembro); preguiça-me escrever mais que três linhas, e os portes pagas tu.

      (Desperdiças o talento que tens com o silêncio. Enfim)

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  2. Fico para aqui perdida em cogitações se os gajos da precoce ejaculação serão os críticos mencionados.

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    1. Por acaso não. Mas só por obra do acaso. Duração estimada pela autora, tanto quanto recordo, um minuto. Estudos científicos sérios estabelecem a média nos quatro minutos. Depois há variáveis. Bebedeiras também.

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  3. Dou-te os meus parabéns, não só o leste, como ainda lhe fizeste a recensão :)

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    1. Um acto sacrificial, uma oferenda, quero apaziguar o Eros que vive em mim.

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